Passaporte para a Imortalidade - Iberê Camargo
- Marisa Melo
- 23 de ago. de 2022
- 4 min de leitura
A Arte é o espelho da nossa alma. Dorian Gray e Fausto retratam sonhos: beleza, prazer, sabedoria... Oscar Wilde e Goethe souberam captar nosso íntimo, retratar suas épocas e entraram para a História. Esse é o poder da folha, da partitura e da tela em branco. Elas não esperam apenas mais um texto, mais uma canção, mais um quadro. Diante delas, um inglês escreveu “Ser ou não ser”. Um alemão combinou quatro notas mágicas em sua 5ª. Sinfonia. E um italiano pintou um sorriso enigmático. Passaram-se os séculos. E Shakespeare, Beethoven e da Vinci seguem vivos e reverenciados. Nenhum deles planejou isso. Mas ao traduzirem suas almas em suas obras, conquistaram um passaporte para a imortalidade. Quando essa entrega acontece, o observador é conquistado. E aplaude um estilo, que buscará avidamente no próximo quadro. Até criar uma intimidade que lhe permita em segundos relacionar a obra ao autor.
Vamos conversar sobre alguns artistas e seus estilos inconfundíveis.
Hoje conosco, Iberê Camargo.

Signo Branco 1976 - Imagem Goolgle
Das paisagens, da luz, para o denso, para o sombrio. Avesso ao academicismo, buscou a liberdade artística e chegou a ser aclamado como melhor pintor brasileiro da época. O que há por trás dessa guinada visual?
Iberê viveu entre 1914 e 1994. Presença constante em exposições pelo mundo todo, sua obra foi acolhida e aclamada de Lagos a Veneza. Embora tivesse conhecimento de diferentes vertentes estéticas, não se filiou a nenhuma delas. Uma independência e uma busca dos próprios caminhos marcaram uma originalidade que sempre lhe garantiu o êxito junto à crítica e ao público.
A convivência com artistas como Portinari e os anos de estudos e contatos na Europa ajudaram a apurar sua técnica e a marcar com mais clareza um estilo todo seu, onde aparecem com destaque bicicletas e ciclistas.
Mas em sua trajetória há um ponto de inflexão. Um divisor de águas.
É impossível dissociar a vida da obra. Não faltam artistas com histórias de vida cheias de atribulações e dificuldades. Na longa lista lembramos de Gauguin, Franz Kline e o destaque maior vai para Van Gogh.
As telas revelam de modo inequívoco o estado de espírito do artista.
Por mais que a mensagem e o recado artístico sejam consistentes, a alma do artista está ali, presente em cada pincelada. E as tristezas e alegrias acabam por se escancarar em cada imagem.
Na década de 80, Iberê matou um homem.
Na rua, ele observou um casal discutindo. O marido, incomodado, atravessou a rua para questionar Iberê. Um encontrão e o artista caiu. Sacando então seu revólver e disparando 5 tiros. Preso em flagrante, em menos de dois meses estava livre, graças a suas conexões com o poder e a uma interpretação questionada do conceito de auto-defesa.
A realidade se impõe a nossas generalizações e nossas ideias românticas. Apreciamos os artistas que emprestam seus talentos a causas construtivas. A arte é irmã da paz. Um artista opta conscientemente ao escolher um pincel e não uma arma como seu instrumento de ação social.
Iberê andava armado o tempo todo. Fez cursos de tiro. E não hesitou em disparar num pai de quatro filhos.
É também importante localizar no tempo esse acontecimento. O Brasil, na ocasião, estava em plena ditadura militar. E Iberê tinha amigos nos altos escalões. Que lhe garantiram todas as regalias possíveis em seu curto período de cadeia (28 dias) e lhe proporcionaram uma absolvição que resistiu a recursos graças a amizades e compadrios questionáveis.
Iberê foi libertado. Mas...saiu ileso?
Seus quadros nos gritam que não. As cores leves deram lugar ao marrom escuro, ao preto, ao roxo. Os ambientes iluminados deram lugar a um sombrio mundo de trevas. Ele nunca mais foi o mesmo. Difícil não associar essa escuridão a sentimentos tardios e amargos de remorso e arrependimento.
Não nos cabe julgar. Afinal, sabemos que a divindade brilha em todos nós, sem exceção. Do santo ao assassino, todos trazemos uma chama divina que buscamos evidenciar ao longo dos aprendizados de uma existência.
Mas a obra de Iberê traz ensinamentos que precisam ser assimilados. O preço que pagamos por nossas ações pode até ser atenuado por uma justiça falha, por uma sociedade omissa, pela violência no poder. Mas é sempre cobrado por nossa consciência que resiste a se calar. Que sofre pela convicção de que não fizemos e não estamos fazendo o que é preciso para nos elevarmos, para marcar nossa passagem no planeta como uma jornada de aperfeiçoamento.
Nossas palavras podem contar uma história atenuada.
Mas outro artista já nos revelou que certas coisas não se escondem.
John Lennon em uma de suas canções nos diz que existe algo que não conseguimos esconder: quando estamos mal “por dentro”.
É o resgate de uma humanidade às vezes esquecida. Sim, o artista é como nós.
E é justamente aí que ganha importância a sinceridade artística. Que permite ao observador se identificar com uma obra, mas também com outro ser humano.
Que também sonha, também erra e também sofre.

Série Ciclista 1990 - Imagem Goolgle

Paisagem, 1956, Iberê C. - photo: jfinatto

Outono no Parque da redenção II - 1988 Imagem Goolgle